03 setembro 2017
Apresentação do livro "A educação na novela de internato: a obra de José Régio"
Escrevendo em inglês para um público internacional, este estudo sobre um autor maior da literatura portuguesa constitui igualmente uma introdução às grandes temáticas da cultura e da história portuguesas do séc. XX.
No primeiro capítulo («A importância da novela de escola para a pesquisa pedagógica») afirma-se o interesse da literatura de tema escolar para o conhecimento das teorias e das práticas educativas, tendo em conta os apports da teoria literária sobre a (auto)biografia, os debates sobre o facto vs. ficção e a história da novela e das suas ambiguidades como género. A escrita que parte do sofrimento psicológico e/ou físico do seu autor (Leidensgeschichte) é assumida como uma compensação perante a mortalidade humana.
O segundo capítulo («Os géneros das narrativas sobre a juventude») ocupa-se da genologia da narrativa que tem por objeto a juventude e o adulto por autor. Entre elas destacam-se as que incidem sobre a formação do caráter, e as que se ocupam da crítica ou da apologia da educação informal e formal, incluindo nestas últimas as que procuram defender ou denegrir o modelo educativo do internato. Os desafetos a este sistema educativo que registaram o seu desgosto na ficção autobiográfica foram movidos pelas suas próprias experiências escolares mais ou menos desastrosas e traumáticas. O conceito de Bildung é reavaliado historicamente e devolvido à sua formulação tal como fixada por Wilhelm Dilthey (1833-1911), rejeitando a sua sobreposição com outros tipos de narrativas: a novela sobre a juventude, o novela de formação anterior à formulação do Bildungsroman, ou a novela feminina de despertar. Também o novela de artista e o novela de escola contribuem para a definição genológica da novela de internato, no qual se insere a obra Uma gota de sangue (1945) do autor português José Régio (1901-1969). Régio foi o fundador do movimento cultural 'presencismo' que, sob o influxo de Fiodor Dostoievski, Friedrich Nietzsche, Sigmund Freud e Henri Bergson, procurou superar as tendências racionalistas, bem como a influência do realismo literário e do positivismo filosófico em Portugal.
O terceiro capítulo («Internatos como lugares especiais ou alotopias») ocupa-se da contribuição do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) para o estudo da espacialidade, em especial no seu artigo «Des espaces autres» (1984), e do psicólogo canadiano Erving Goffman (1922-1982), em Asylums (1961), para a orgânica interna dos espaços de clausura e para a psicologia do enclausurado, aplicável ao estudante em internato. A digressão de Foucault é objeto de uma leitura crítica, que procura explorar e ampliar as suas sugestões acerca da sobrecarga de significação que certos espaços adquirem em função das relações especiais de poder que neles se geram (alotopia, preferível à «heterotopia» usada por Foucault), em contraste com os lugares menos marcados e em oposição aos não-marcados (os «não-lugares» de Marc Augé), diferenciando-os igualmente da «hiper-realidade» e dos simulacra de Jean Baudrillard.
No quarto capítulo («Oposições de género na literatura sobre escolas») estuda-se a intersecção entre a novela de escola enquanto género literário, do qual se estabelecem os topoi próprios, e a genderização da narrativa: para os autores masculinistas, sobretudo os do séc. XIX, a educação total em regime segregado constituía um requisito indispensável para as primícias da conquista social da masculinidade. Esta educação fortemente genderizada implicava uma severa restrição do papel das mães e de outras figuras maternais na vida dos rapazes, tida como necessária para travar a desvirilização ou feminização da cultura e o seu corolário, a decadência e degenerescência («Entartung») da civilização (Max Nordau). Não obstante, a ideologia masculinista presente na novela de internato, especificamente na variante apologética daquele modelo educativo, denota alguma ambiguidade no tratamento do tema sensível das amizades masculinas com laivos românticos, e do seu oposto, o bullying: o principal dilema residia na fixação dos limites para a livre expressão das emoções, nos graus de intimidade admissíveis, e na definição dos conceitos de maturidade e de autodomínio, pedras basilares na precária conquista de uma virilidade sempre instável e vulnerável.
O quinto capítulo («José Régio e a ficção autobiográfica na novela de internato portuguesa») centra-se no estudo de José Régio, da sua obra em geral e da sua novela de internato em particular. As teorias de Régio sobre a arte, com o seu culto da sinceridade artística, que na sua época foi transversal a várias literaturas europeias e mesmo ao watakushi shôsetsu japonês, revelam as influências de Leão Tolstói, Marcel Proust e sobretudo de André Gide, tendo em conta os laços entre o movimento que Régio fundou em torno da revista coimbrã presença e a Nouvelle revue française parisiense do Entre-Guerras. O presencismo é contrastado com os movimentos culturais e literários anteriores («Renascença Portuguesa») e posteriores (neorrealismo), sem esquecer as implicações políticas da controvérsia sobre o valor da arte e da cultura populares (völkisch). Relaciona-se a obra de Régio, Uma gota de sangue, com outra novela presencista de internato, Internato, publicada no ano seguinte por João Gaspar Simões, e situa-se a posição de José Régio e de G. Simões no debate sobre a amizade masculina, um tema fulcral para os escritores desta corrente.
O sexto capítulo («Pais, mentores e companheiros») é dedicado ao género memorialístico e ao complexo de Telémaco — a busca pelo Pai e por outras figuras paternais, como o mentor — a par das relações de companheirismo tecidas entre os sujeitos masculinos de uma mesma geração. São referidos os comentários dos resenhistas que se ocuparam de Uma gota de sangue e esboça-se a tipologia das personificações literárias da juventude masculina. Perspetiva-se historicamente a recorrência da nostalgia e da saudade enquanto topoi centrais na literatura portuguesa e realça-se o poderoso impulso criador do narcisismo e da melancolia do artista (a «via dolorosa»).
No sétimo capítulo («Análise educativa de Uma gota de sangue») destacam-se alguns aspetos da novela de Régio, nomeadamente a criação da díade entre Lelito e Pedro Sarapintado (os tipos intelectual e o atlético), segundo o modelo pedagógico de Thomas Arnold (1795-1842), adotado para a reforma do sistema dos «prefeitos e fags» na Rugby School (1828 a 1841). A construção espacial do Colégio Familiar feita por José Régio na sua novela é então articulada com as teses sobre a alotopia, segundo Foucault. Merecem particular atenção a temática do masoquismo psíquico (Leidensgeschichte) na narrativa portuguesa (a estigmatização do artista pela «marca de Cain») — antes e após a receção de Arthur Schopenhauer — e o diálogo fecundo que Régio entabula com Friedrich Nietzsche ao longo da sua obra.
Por fim, no oitavo capítulo («Conclusões»), procura-se obter uma visão de conjunto sobre o contributo de José Régio para os estudos literários e pedagógicos portugueses.
Um Apêndice enumera as obras fundamentais que criaram o Bildungsroman na Alemanha, bem como alguns marcos da literatura sobre juventude e da novela de escola e de internato em Portugal. Completam o livro uma Tabela de referências e um breve Índice onomástico e de ideias.
Este estudo vem conferir um novo relevo à invulgar dimensão literária, filosófica e pedagógica do Autor de Uma gota de sangue.
Education and the Boarding School Novel
The Work of José Régio
2017 - 172 pages
Filipe Delfim Santos
ISBN Paperback: 9789463007399 ($ 54.00)
ISBN Hardcover: 9789463007405 ($ 99.00)
ISBN E-Book: 9789463007412
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Índice, dedicatória e capítulo primeiro de Education and the Boarding School Novel