27 outubro 2013

CONFIDÊNCIAS AFRICANAS DE UM REBELDE



Jorge Manuel Martins




(Comunicação no lançamento das Memórias de Eugénio Lisboa, vol. III, Centro Nacional de Cultura, Lisboa, 24/10/2013)


Para a Maria Eugénia Lisboa


Estamos em presença do terceiro volume das memórias de Eugénio Lisboa (EL), reunidas sob o título comum de Acta Est Fabula. Sabendo que tal expressão servia, no antiquíssimo teatro romano, para anunciar o final de um espetáculo, podemos com propriedade chamar «atores» às personagens que habitam estas memórias. Ora, neste terceiro volume (Lisboa, 2013), um dos atores chamados a palco dá pelo nome de Pegado, mestiço jeitoso para eletricidades e máquinas. Quando alguém lhe pedia um conserto, o Pegado respondia sem pestanejar: «Pode-se dar um jeito...». Idêntico atrevimento deve ter-me assaltado, quando aceitei o desafio de apresentar este volume no Centro Nacional de Cultura, em Lisboa. E enquanto esperava pelo original e dele só conhecia o título, fui ensaiando várias hipóteses de «dar um jeito» a tão lisonjeiro desafio, eu que nunca estive em Moçambique!

À sua chegada ao espaço público, estas memórias parecem apostadas, de imediato, em provocar ou pelo menos intrigar o leitor. Por um lado, o título deixa supor alguma melancolia, uma vez que a expressão «acta est fabula» – a crer em Suetónio – também serviu ao imperador Augusto como despedida derradeira. Mas, por outro lado, todos quantos conhecemos de perto EL sabemos como o seu discurso é sempre marcado pelo vivido, pelo entusiasmo contagiante, pela recusa do trivial e choramingas «era uma vez». Portanto, embora intrigados, retenhamos para já, deste título geral, a saborosa evocação do palco romano e comecemos pela mais óbvia das hipóteses: a de que as presentes memórias saem à rua sob o signo do teatro.

Desde os seus primeiros ensaios, EL revelou-se sempre um arguto analista das emoções em cena. Recorde-se a atenção dedicada às grandes dramaturgias, como as de Régio ou de Montherlant. E agora, com este terceiro volume, ficámos a saber que não perdia as melhores representações quando vinha à Europa e que, mesmo durante um estágio de petróleos na África do Sul, não dispensava, como refere, «alguns livros de algibeira (sobretudo teatro)» (ibidem: 253).

Curiosamente, a época, a que corresponde o presente volume, coincide com as metáforas do meio teatral aplicadas, por Erving Goffman, ao estudo das subtis interações entre os diferentes atores sociais, nas ordens doméstica e organizacional. E foi pela mesma época que um outro sociólogo, Howard Becker, começou a recorrer à sua experiência de pianista de jazz para desenvolver o conceito de «redes de cooperação» nas profissões dos mundos da arte. É sabido que tal atenção às dramaturgias do quotidiano contribuiu para a renovação da sociologia da comunicação e da cultura e, por outro lado, que as assombrosas coincidências, entre o que os escritores «sabem» e o que os cientistas «procuram», já deram origem a estimulantes ensaios de epistemologia literária, como o de Vintila Horia.

Assim, não parece despropositado sugerir, como uma das chaves de leitura do presente volume de memórias, as dimensões do teatro e da contemporaneidade. Mas a ocasião não será a adequada para avançar em tal direção. Até porque a longa «peça de teatro» agora em cena, apesar do seu título geral, ainda não terminou. Suspeito mesmo que o seu autor já se encontra a escrever o quarto ato, pois em tempos, numa entrevista a Júlio Conrado, EL revelou o seguinte: «Não descanso enquanto não escrever as minhas memórias de Londres, (...) anos cheios, inesquecíveis, de teatro (de teatro!), de música, de livros, de viagens, de encontros, de inspiração» (Lisboa, 1998). Como vemos, a primeira e mais enfatizada memória de Londres é... o teatro!

Entretanto, como o original deste terceiro tomo das memórias continuava a não me chegar em versão papel (para mim, está fora de questão ler 500 páginas no ecrã...), fui ensaiando um segundo modelo de aproximação. Sabendo que o presente volume abre com o regresso a África (em 1955) e se prolonga até à saída definitiva de Moçambique (em 1976), decidi reler os testemunhos das personalidades que, tendo lá convivido com EL durante essas duas décadas, colaboraram no recente livro de homenagem coletiva (Martins e Almeida, 2011). Desses textos «africanos», peço licença para escolher três: os de Ana Mafalda Leite, Carlos Adrião Rodrigues e Frederico Monteiro da Silva.

Ana Mafalda Leite dirige uma bela carta ao seu «amigo e professor» que, em 1975-76, na nova cidade de Maputo, conseguia fazer entrar Gide, Montherlant, Régio, Sena e muitos outros pela sala dentro.  E recorda como esses autores passavam a ser verdadeiras «personagens» do quotidiano universitário, por cortesia de um professor que, de modo entusiástico, «os dramatizava em viva biografia» (graças à sua paixão pelo teatro, digo eu...). A certo passo, escreve ainda a antiga aluna: «O nosso Professor Eugénio tinha e tem um não sei quê de dandy, que contracena com a sua segura boa disposição» – (de novo o teatro...) –, «sempre atento à importância da arte e da literatura, fontes e pontes para a vida, e não o inverso».

Carlos Adrião Rodrigues evoca a participação de EL e outros amigos em «projetos comuns» e «campanhas oposicionistas» em Lourenço Marques. E conta episódios reveladores, concluindo: «os que acreditavam que a arte tinha um valor específico, que não se compadecia com espartilhos ideológicos, eram os que, em sociedade, tomavam posições mais corajosas e coerentes em defesa da liberdade e da justiça». Dizia ainda este ilustre advogado, entretanto falecido: ao EL ficou a dever-se a luta «por uma cultura moçambicana», em conjugação «com a universalidade da grande cultura», através do «intermediário estético que era a língua portuguesa», por certo o «principal fator capaz de fazer do Moçambique colonial um país e uma nação». 

Frederico Monteiro da Silva, desde 1958 «colega engenheiro» na Total (filial da Compagnie Française des Pétroles para a África Austral), confessa-se admirador das qualidades de EL, enumerando-as assim: «vício da leitura», «integridade e talento», «hábitos frugais», «prodigiosa memória», «muita e variada erudição». Entre outras informações, Monteiro da Silva conta que EL, regressado do Técnico e de novo em Lourenço Marques, «destacou-se nas tertúlias intelectuais da cidade» e passou a ser «a consciência intelectual dos Jovens Naturais de Moçambique», colaborando sempre «em jornais e revistas de Moçambique e de Portugal europeu, cuja prática mantém até hoje».

Resumidos, assim, três dos muitos e interessantes testemunhos do citado livro de homenagem, reconheça-se, mais uma vez, não ser este o lugar apropriado para dar conta de um «trabalho de campo» a haver (quando possível): o de entrevistar atores sociais que partilharam o quotidiano de EL em Moçambique, nas duas décadas correspondentes a este terceiro volume de memórias, com o objetivo de cruzar fontes de informação.

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Até aqui, foram enunciadas algumas hipóteses para um modelo de análise desta obra. Porém, uma vez recebido o original (logo devorado e a seguir relido e muito sublinhado, como é meu antiquíssimo hábito...), dei por mim a perguntar-me: qual será, no futuro, o público deste livro? Esta questão, colocada assim à cabeça, denuncia por demais a minha tineta de profissional e professor de comunicação e marketing. Deixem-me, porém, repetir a pergunta, de modo ainda mais desabrido: quem será o cliente deste produto? 

Para alguns ouvidos, a inscrição do livro em tais parâmetros comerciais pode ser chocante e, «embora ditada por boas razões metodológicas de enquadramento na recente economia da cultura, não é isenta de riscos»; um desses riscos pode ser o de «caucionar o atual pendor internacional de obediência (quase) cega à ditadura do cliente médio e de transferência, para a esfera da difusão, da responsabilidade das decisões da produção» (Martins, 2007). Mas eu sei que esta linguagem não é chocante para EL. O mesmo autor que lamenta como «o mercado e a generalidade das pessoas respiram mal o sublime», também reconhece que «podemos ter um grande produto a mostrar, mas é preciso publicitá-lo intensamente e isso custa dinheiro» (Lisboa, 2011). Quem se atreve a discordar? A diferença entre qualidade-técnica e qualidade-percebida já não oferece dúvidas, mesmo no sector português da gestão cultural.

Regressando à minha impertinente questão: nestes tempos em que predomina o entretenimento trivial e chão, quem vai ler estas 500 páginas de impressionante literatura memorialística? Façamos algumas contas. Este terceiro volume propõe o regresso aos anos 55-76 do século passado em Moçambique. Arredondando e simplificando, são memórias de há 60, 50 e 40 anos, vividos numa antiga colónia lusófona. Quem serão, hoje, os potenciais leitores médios deste testemunho de vida?

A geração dos meus filhos e dos meus alunos –  que anda agora pelos 30, 40 e 50 anos – configura o segmento mais apetecido pela indústria livreira, pois é aí que se verificam (segundo os estudos recentes) as melhores práticas de leitura, mesmo em concorrência com outras solicitações (Santos, 2007). Acontece, porém, que os membros desta geração não viveram pessoalmente o tempo das presentes memórias ou, então, nessa época não tinham ainda acordado verdadeiramente para a vida. Para a maioria deles, o Estado Novo, a Guerra Colonial ou o Abril de 1974 situam-se algures num passado muito remoto, de brumas, aljubarrotas e fotos a preto e branco. E acontece também que, viciada no toca-e-foge digital da comunicação instantânea e impaciente, esta geração parece revelar algum medo do silêncio e do tempo, indispensáveis para ler um livro como o agora editado.

Por tudo isso, se eu pudesse e soubesse, gostaria de me dirigir especialmente à geração dos meus filhos e dos meus alunos (as filhas de EL, ambas grandes leitoras, pertencem a tal geração e, por isso, o meu presente texto é dedicado à mais velha, a Maria Eugénia), com o objetivo de lhes apresentar as memórias de EL e aliciá-los a lê-las. Para quê? Para que pudessem perceber por dentro a geração anterior à sua e, assim, perceberem-se melhor a si próprios. E também para tentar ampliar a imensa minoria que sabe como um bom livro não dá para viver, mas dá viver.., mesmo pagando tributo ao tempo – o tempo que faz do velho livro «a expressão direta para sair das tiranias da comunicação» (Wolton, 1997). Assim, vale a pena convidá-los a ler EL.

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Foi há cerca de meio século: a vida social era então estruturada por um espaço e um tempo bastante precisos; um espaço definido por locais comuns, pessoais, profissionais e outros, como o café, o cinema e a livraria; um tempo definido pelas agendas da família e dos grupos sociais de trabalho, tertúlia e lazer; lugares e tempos que construíam comunidade e cidadania. Foi há cerca de meio século: a cultura era uma espécie de consciência crítica da humanidade, consciência que obrigava a olhar de frente o real e que impunha a figura do intelectual como um importante ator social do século XX. Querem ouvir?

Recuando 50 anos, ao tempo em que trabalhava nos petróleos da Total em Lourenço Marques, escreve EL: «Entretanto, ia lendo muito e vendo muito cinema», o que ajudava «a aprofundar ideias e emoções. E a ver mais claro. (...) Não tinha o tempo todo, porque, profissionalmente, estava bastante ocupado» (Lisboa, 2013: 246-247). Porém (acrescenta mais à frente), como «o trabalho não tinha grandes mistérios e os problemas já estavam mais do que identificados», podia desenvolver outros interesses como «a leitura, a escrita, as conferências que fazia, o ‘Cine-Clube’, o teatro, os cinemas, a descida às livrarias da Baixa, aos sábados de manhã, (...) os amigos, o convívio nas casas de uns e de outros, a praia... Era uma vida cheia, emocionante, rica, numa cidade de onde não apetecia sair» (ibidem: 269-270).

Esta referência ao «convívio» remete para a abertura do anterior sétimo capítulo destas memórias, onde EL recorda ter sido em 1959 que conheceu «alguns dos amigos que duraram até à morte deles» (como Rui Knopfli e Carlos Adrião Rodrigues) e as respetivas reuniões de sábado, nas suas casas ou nos cafés, «ruidosas, animadas e, umas vezes, estimulantes, outras vezes, apenas ruidosas e irritantes» (ibidem: 115, 118). Os amigos tendiam a aquecer quando falavam «de livros, de filmes, de discos, de quadros», embora tivessem «realmente em comum» algo de muito importante: os três amavam «uma arte livre de imposições ideológicas – uma arte que preservasse, acima de tudo, os valores da arte»; ou seja, uma arte «forte» que não vergasse a quaisquer «dogmas rígidos» de esquerda ou de direita (ibidem: 317-318, 348).

Alargados a outros amigos, tais debates foram transbordando para as revistas ou jornais onde (como «jornalistas amadores ou diletantes», portanto sujeitos a receber em troca «calúnias, desconfianças e patadas») passaram a colaborar e a poder evidenciar a sua opção pela liberdade. Opção que se traduziu, por exemplo, na Voz de Moçambique de 3 de janeiro de 1965, neste desafio corajoso: elegeram D. Sebastião Soares de Resende, então Bispo da Beira, como «figura do ano», apesar de saberem que «a PIDE odiava-o e o Estado Novo temia-o» (ibidem: 323, 326-327). Rapidamente começaram a ser considerados «perigosos comunistas». EL, que sempre se afirmara independente – «nunca compreendi como se podia detestar o Estado Novo e venerar o Estado Soviético» (ibidem: 181) –, esclarece quem ainda mantenha dúvidas: «éramos frontalmente contra o Estado Novo – que considerávamos, além do mais, intelectualmente pelintra e possidónio – mas jamais fomos aliciados pelas sereias do marxismo-leninismo, a que éramos figadalmente avessos»; todavia, em Moçambique, «qualquer interesse pela política, que não passasse pela União Nacional, era suspeito» e, sobretudo, «na questão quente das colónias, a divergência chamava-se ‘traição’» (ibidem: 294-295).

Começava então a ser óbvio «que as colónias portuguesas tinham os dias contados» e se «os sinais apareciam por todo o lado», com a eclosão da guerra «o clima, nas colónias, mudou bruscamente» (ibidem: 122, 129). Porém, «o mais doloroso disto tudo», recorda EL, seria reconhecer que «a independência de Moçambique era inevitável. Não que a não considerássemos, também, eticamente boa, mas não tínhamos dúvidas de que, quando viesse, a nossa vida iria mudar dramaticamente. O nosso mundo iria desabar, para que outros tivessem direito ao que até aí lhes fora negado» (ibidem: 295).

O último capítulo deste volume de memórias – mais de 50 páginas subordinadas ao título «Revolução» – é profundamente dilacerante. Começa assim: «O ano de 1974 ia ser cheio de emoções exageradas: exaltação, alegria, esperança, decepção, medo e desespero. Tudo num caldo de sabor, por vezes, angustiante» (ibidem: 425). Deste último capítulo – como aliás de todo o presente volume –, fica muita matéria à consideração de quem tenha o engenho e a arte de reconfigurar, com a marca pungente do vivido, algumas assépticas histórias de Portugal. Tal marca do vivido vem sempre elegantemente disfarçada pelo humor britânico de quem, como poucos, é capaz de relativizar o sofrido com a evocação certeira do divertido. «Conto apenas um punhado de histórias», desculpa-se o autor, apesar de saber quanto elas podem ser «representativas da epopeia de desastres e desmoronamentos que avassalava o país e atingia, com particular crueldade, a comunidade portuguesa» (ibidem: 472).

[Neste ponto, permito-me introduzir uma memória pessoal, do meu tempo de diretor editorial da Arcádia, quando preparava o livro de EL intitulado José Régio, a Obra e o Homem, lançado em 1976. Depois de nos termos carteado durante meses, encontrámo-nos finalmente na Arcádia. Na conversa, participaram mais duas pessoas: o Almeida Gonçalves, que veio a ser, durante 25 anos, o sábio editor da belíssima coleção de livros ilustrados dos CTT Correios de Portugal, alguns deles distinguidos com prémios de relevo; e uma professora universitária cujo nome esqueci e que, ao tempo, acreditava com entusiasmo militante no marxismo triunfante. Foi uma saborosa conversa, porque nela brilhou a cativante presença de EL. Mas foi uma conversa dolorosa, porque ele nos contou algumas das inquietantes histórias moçambicanas que reaparecem, agora, no último capítulo deste volume de memórias. Todavia, por cada desgraça narrada por EL, a tal professora contrapunha reticências, dúvidas e reservas, numa tentativa de desvalorizar aquele testemunho. O EL, diplomata, generoso e tolerante, não se ofendeu e até sorriu. Mas o pior (o pior...) aconteceu depois de ele ter saído, quando a dita militante rematou, com fervor intransigente: «Isto tudo até pode ser verdade, mas não posso concordar, para não alimentar a direita reacionária»...].

Após este parêntese das minhas próprias recordações, voltemos ao volume em apreço. Desse movimentado palco onde se sucederam, há quatro décadas, grandezas e misérias, desassossegos mortíferos e anedotas melancólicas, alarmes terríveis e apocalipses vários, desse palco da vida vemos agora descer, com serena dignidade, o autor destas memórias. Apesar de ter sido «obrigado a ficar só Português» por força de uma «desumana lei das nacionalidades» (ibidem: 464), imposta então em Moçambique pela FRELIMO, vemos ainda hoje – numa entrevista à televisão em Agosto deste ano de 2013 – EL afirmar com a lucidez de sempre: «Eu sou muito europeu e sou também muito africano. Não me sinto desenraizado. Sinto-me com múltiplas raízes» (Lisboa, 2013b).

Aberta esta singular proposta de leitura, aqui, perante vocês, geração mais nova que estive a tentar aliciar, reconheço diferenças e fico com vontade de vos colocar questões. Ao contrário do que sucedia, há quase meio século, o espaço e o tempo da vossa vida social parecem, hoje, demasiado governados pelas modernas redes de comunicação global. Pergunto: vocês, sentem-se realmente felizes? E também parece que o entretenimento e a diversão andam a querer substituir a educação e a cultura; e que o sensacionalismo e a frivolidade andam a querer apresentar-se como suficientes para manter em cena o grande teatro do mundo civilizado. Pergunto: vocês, geração mais nova, vão mesmo deixar?

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Três notas finais a encerrar esta apresentação. A primeira para agradecer, ao autor destas memórias, a generosidade com que anda a partilhar a sua vida com os leitores, os atuais e os futuros (os tais que eu tentei aqui aliciar...). Ao agradecimento, talvez o EL contraponha o incitamento recebido de José Régio: «Quando se resolve, então, a organizar e a publicar livros que tem obrigação de nos dar? (Obrigação perante si próprio, perante os Seus, perante os amigos... e perante a cultura nacional)», escrevia o autor de Há mais mundos, insistindo para que EL assumisse a sua «função de escritor» (Lisboa, 2013: 346, 353). Como é sabido, assumiu mesmo.

A segunda nota destina-se a explicar por que motivo chamei ao presente texto «Confidências Africanas de um Rebelde». Se roubei parte do título à conhecida novela de Roger Martin du Gard, foi para convocar um dos escritores de cabeceira de EL – cujas obras completas a Antonieta lhe ofereceu quando casaram (Lisboa, 2013: 99) – e também para recordar que a Confidence Africaine abre com uma data, «Maio 1930», a do nascimento do próprio EL... Por outro lado, se chamei «rebelde» ao nosso autor, foi para sublinhar como ele sempre recusou as imposições ideológicas à direita e à esquerda, sempre teve a honestidade e a coragem de fazer uso da razão, talvez a exemplo de Henry de Montherlant, seu «professor de independência e de altivez» (Lisboa, 1996: 218), mas também na senda de Bertrand Russel, cuja inteligente e irónica autobiografia EL sempre colocou «num lugar à parte» (ibidem: 245). Por tudo isto, sou levado a considerar, como um dos episódios-charneira do presente terceiro volume de memórias, o momento em que um director francês da Total lhe diz cara a cara: «Lisboa, V. está a fazer um óptimo lugar (...). Mas V. é um rebelde» (Lisboa, 2013: 301). A competência e a rebeldia eram (e são) coisas muito raras e... perigosas!


A terceira e última nota é para referir que, tendo eu iniciado esta nota de leitura com o «pode-se dar um jeito» do Pegado, quero terminá-la com uma segunda história do mesmo jaez. A um outro mestiço do interior, que nunca vira o grande oceano, alguém foi-lho mostrar. Mas só conseguiu arrancar-lhe esta insólita, porém sóbria, exclamação: «Ah, o mar! É muito distinto...». Também eu, convicto de ter estado aqui a tentar apresentar uma importante obra de um poderoso escritor – uma obra que representa um verdadeiro insulto à vulgaridade reinante nos atuais escaparates livreiros –, também eu vou remeter-me ao prudente silêncio que a sobriedade aconselha. Mas em vez de uma apreciação insólita – do género: «Ah, este livro! Um oceano de escrita! Muito distinto...» –, proponho-me levar até ao fim o título geral das presentes memórias. O autor chamou-lhes Acta Est Fabula, como diziam os romanos no fecho de um espetáculo de teatro. E eu vou acrescentar-lhe o competente imperativo de encerramento: se o dramaturgo afirma que a sua peça está (por agora) representada, então há que aplaudir Eugénio Lisboa. Portanto: plaudite.

Lisboa, Centro Nacional de Cultura, 24 de outubro de 2013


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BIBLIOGRAFIA CITADA

BECKER, Howard S. (1982), Art Worlds, Berkeley, University of California Press.
GOFFMAN, Erving (1993[1959]), A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias, Lisboa, Relógio d’Água, tradução de Miguel Serras Pereira.
HORIA, Vintila (1978), Introdução à Literatura do Século XX. Ensaio de Epistemologia Literária, Lisboa, Arcádia, tradução de João Maia.
LISBOA, Eugénio (1996 [1973,1975]), Crónica dos Anos da Peste, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
LISBOA, Eugénio (1998), Entrevista, Boca do Inferno 3, Câmara Municipal de Cascais.
LISBOA, Eugénio (2011), «Resposta ao Questionário de Proust» e «Entrevista», apud Martins e Almeida, 425 e 415.
LISBOA, Eugénio (2013), Acta Est Fabula. Memórias III. Lourenço Marques Revisited. 1955-1976, Guimarães, Opera Omnia.
LISBOA, Eugénio (2013b), Entrevista ao programa «Mar de Letras» (RTP, Agosto 26; RTP África, Agosto 31),
MARTIN DU GARD, Roger (1931), Confidence Africaine, Paris, NRF-Gallimard
MARTINS, Jorge Manuel (2007), «Livros: Difícil é Vendê-los», Ofícios do Livro, Universidade de Aveiro.
MARTINS, Otília Pires / ALMEIDA, Onésimo Teotónio de (org.) (2011), Eugénio Lisboa: Vário, Intrépido e Fecundo: Uma Homenagem, Guimarães, Opera Omnia.
SANTOS, Maria de Lourdes Lima dos (coord.) (2007), A Leitura em Portugal, Lisboa, Minstério da Educação (GEPE Gabinete de Estaística e Planeamento da Educação).

WOLTON, Dominique (1997), Penser la Communication, Paris, Flammarion.

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Jorge Manuel Martins, natural de Lisboa, doutorado em Sociologia da Comunicação e da Cultura pelo ISCTE, membro da Academia Portuguesa da História, professor universitário e consultor de empresas, foi membro da Comissão Nacional da UNESCO e presidente do Instituto Português do Livro e das Bibliotecas. É autor de Marketing do Livro (1999), Patrimónios Mundiais com Selo Português (2003), Profissões do Livro (2005) e de vários volumes da série anual Portugal em Selos.






25 outubro 2013

Lançamento do vol. III das Memórias de Eugénio Lisboa, 2º na ordem da publicação, 24/10/2013




Decorreu ontem, no Centro Nacional de Cultura, o lançamento do vol. III das memórias de Eugénio Lisboa. O Autor estava radiante e transudava felicidade. Nunca é demais celebrar quem, no momento em que poderia estar a descansar das vicissitudes de uma vida preenchida, tem a generosidade de nos enriquecer a todos com a partilha das suas memórias. E para mais estas, com um saboroso travo africano. Não contêm tanto José Régio como o futuro vol. II obviamente conterá, mas os regianos lá encontrarão algo, evidentemente, ou não fosse o Autor justamente um dos mais destacados estudiosos da obra do grande vila-condense.



O Convite.


O Autor, Jorge Martins que apresentou o livro e o editor José Manuel Costa.


O Autor e o seu editor, da Opera Omnia.


Eugénio autografando o livro para um dos inumeráveis fãs presentes.


Antonieta Lisboa, linda, discreta e feliz como sempre.

Para rever o impacto do vol. I: http://blogs.ua.pt/dlc/?p=253.