25 março 2015

Morte de José Régio


A morte de José Régio numa carta inédita de Luís Amaro para Jorge de Sena



[Lisboa,] 31 de Dezembro 69.

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Meu querido Amigo:

Neste trinta e um em que lhe escrevo, vai, com o meu muito saudar, o desejo ardente de um 1970 feliz, com saúde e novos belos livros.

[...]

Então que me diz à morte do [José] Régio, na manhã de 21 para 22 deste mês – isto é, às 7 horas (provavelmente) da manhã de segunda feira penúltima? No sábado o [Alberto de] Serpa já me tinha dito que eram de aceitar as piores perspetivas (o estado dele tinha-se agravado na última semana). E eu devia ter ido visitá-lo logo nesse mesmo fim de semana, e até antes. Mas não fui. A minha ida a Vila do Conde esteve iminente uma vez, mas o [João] Gaspar Simões desencontrou-se comigo (iria no carro dele) e não fui; depois disso, o Régio melhorou, para voltar a piorar – e assim, aos altos e baixos, esteve a saúde dele nestes últimos meses do ano. Na madrugada em que morreu estivera a palestrar com o rapaz que incansável e dedicadissimamente lhe serviu de enfermeiro (emagreceu 10 quilos, o pobre rapaz!); às 5 horas decidira descansarem um pouco, o rapaz adormeceu sentado num sofá, e o Régio dispôs-se também a fechar os olhos. Às 7 ou 7 e meia, passou lá por casa o primo médico, que foi dar com o doente já morto, com a campainha na mão inerte, a cabeça tombada para o lado, serenamente. Supõe-se que teria tido outro enfarte ao passar pelo sono, morrendo assim sem que ninguém lhe tivesse assistido. O tal rapaz (que de dia trabalhava numa casa em frente, de artigos elétricos) ficou impressionadíssimo, mas todos reconhecem que não pôde fazer mais: a sua dedicação foi total. Ninguém melhor do que ele poderia contar, aos biógrafos do Poeta, o que foram os seus últimos meses.

Como não podia deixar de ser, fui ao funeral – e lá estive, pela vez primeira, na velha casa do Poeta, que na verdade não tinha condições nenhumas para abrigar um doente daquela gravidade. Mas ele assim quis, e ninguém o demoveu – apesar de amar a Vida, como bem se reflete no poema que, já doente, me mandou para a tal página (que continuo lentamente organizando) do Estadão; não creio que a poesia tivesse sido escrita já depois de adoecer, ainda que saiba que, já depois de doente e apesar de rigorosamente proibido de fazer qualquer esforço, ele ainda escreveu algumas páginas do último volume da Velha Casa ou da Confissão dum Homem Religioso em que trabalhava (a propósito, envio-lhe também um trecho, que a Flama publica no n.º de hoje e numa reportagem ao escritor consagrada, que é na verdade um perfeito autorretrato e condiz com palavras que ouvi ao poeta numa tarde em que, aqui na Portugália, há uns 6 anos, o reconciliei com o Edm[undo] de Bettencourt – para afinal não mais voltarem a contactar... O [José] Régio ainda pensou, e quis, escrever um artigo sobre os seus [de Bettencourt] Poemas, mas desistiu, talvez por solidariedade para com o [João] G[aspar] Simões. Sei ainda, porque ele mo disse, que o Bettencourt foi das pessoas que ele mais estimou nos seus tempos de Coimbra: tinha por ele uma amizade quase apaixonada, segundo depreendi quando me disse que chegava a levantar-se da cama para ir ter com o Bettencourt [para] reiniciar discussões que tinham deixado em suspenso. Mas, quanto a mim e decerto quanto a toda a gente, o Bettencourt, embora inteligentíssimo, foi pessoa que parou no tempo: incorrigível preguiçoso, a sua cultura e a sua poesia devem ter-se quedado há muitíssimos anos para a posteridade – oxalá me enganasse! – Mas afinal o que eu ouvi nessa tarde reconciliatória foi isto: que, acreditando firmemente em Deus, [Régio] tinha da humanidade uma visão muito precária, isto é: não acreditava nos valores humanos, mas [nos] divinos. Isto condiz com o que vejo agora reproduzido na Flama, numa crónica destacada, belamente ilustrada, mas escrita por um jovem receoso de dizer que a obra de [José] Régio é de facto grande, e bela, e paira acima, infinitamente, dos gostos circunstanciais da mocidade que passa...

A propósito, envio-lhe um recorte miserável, da ‘Nota’ publicada na Vida Mundial (e que presumo escrita pelo [António] Valdemar – sem disso poder ter a certeza). Veja que infâmia! Começa logo pelo pretenso desacordo entre o «coração» e a «frieza» do criador-poeta: como se nos últimos livros não estivesse bem à mostra, e talvez demais até, uma sensibilidade, um quase-romantismo (em que não faltam expressões em desuso, como «arrebol», rosas desfolhadas, etc., que o Poeta decerto empregava conscientemente, marimbando-se para os jovenzinhos a quem elas horrorizam: se essas expressões condiziam com determinadas vivências suas, porque não havia de usá-las, como puro lírico que foi nessa última fase?). Dir-se-ia que o articulista proíbe os poetas-críticos de adoecerem do coração e muito menos de morrerem dele... Já fica prevenido, meu Caro Jorge de Sena!


Não: toda esta republicazinha precisa muito de si. É um crime que o meu Amigo se recuse a escrever sobre os contemporâneos, como vem acontecendo desde há anos (com raras exceções, uma delas, muito recente, para o Helder Macedo). Não. Assim, deixa o quintal das letras entregue apenas ao despotismo dos jovens que julgam dizer a última palavra! Um artigo seu sobre o [José] Régio, agora, a pôr os pontos nos ii, é indispensável. Creio que a Natércia [Freire] tenciona publicar uma Página especial dedicada ao Homem das Encruzilhadas [de Deus] (e humanamente V. sabe bem que o retrato da V[ida] Mundial é de uma parcialidade atroz: se Régio era orgulhoso, e complicado, e contraditório (?), era também de uma extraordinária humanidade que está bem patente nas suas figuras do povo na Velha Casa e nas Histórias de Mulheres, e era uma pessoa simultaneamente humilde, tímida, adorável companheiro pela simplicidade franciscana. É certo que eu não conheci o Régio intimamente – claro que também a mim, tímido mais que todos, ele de certo modo assustava pela inteligência analítica que se lhe reconhecia. Ah, mas nos meus breves encontros com o Régio, e nos almoços com ele quando vinha a Lisboa, era bem o homem simples, igual-aos-outros, apreciador de um arrozinho doce no Mesquita (restaurante que o deixou encantado) e dialogando à vontade com uma criança ou com um pobre-diabo, sem pose nem encadernações de grande homem, nada régio, mesmo... Sabemos que por trás de tudo isso estava uma inteligência que não dormia, o tal orgulho, o tal feroz sentido de independência, etc. Mas, meu Deus, então a sua Poesia não reflete magistralmente todo esse dualismo? E os seus romances também não?).

Basta de falar de um assunto que o meu Amigo conhece muito melhor do que eu. Ah, é verdade: aqui na casa gostariam de publicar um trabalho seu sobre o [José] Régio – estará disposto a fazê-lo? Claro que o tal velho projeto seu, ou o contrato até para a Arcádia, se esfuma no tempo, cada vez mais esfumado... ou não? Oxalá que não.

[...]

Enfim, basta de conversa (aproveitei umas horas em que me deixaram em paz, para falar destas muitas e variadas coisas, algumas das quais com interesse para a casa. Aliás conversar consigo, mesmo assim ao correr da máquina, foi sempre para mim um prazer raro).


Adeus, querido e eminente Amigo! Bom Ano para si, para D. Mécia, para todo o clã, e o abraço apertado do seu velho e dedicado

Luís Amaro