09 novembro 2013

Texto de apresentação na Universidade de Aveiro de "Acta Est Fabula", Memórias de Eugénio Lisboa, vol. I, 17/12/2012


Jorge Manuel Martins

MEMÓRIAS CRUZADAS

Para a Antonieta Lisboa


Regresso sempre à Universidade de Aveiro com verdadeiro prazer. A última vez foi para o lançamento do livro de homenagem a Eugénio Lisboagrande obra coletiva entusiasticamente organizada por Otília Pires Martins e Onésimo Teotónio de Almeida, belamente editada pela Opera Omnia e oportunamente patrocinada por esta Universidade (Martins e Almeida, 2011).

Concederam-me então o privilégio de integrar o grupo dos 72 autores desse volume e de poder contribuir com um artigo sobre diplomacia cultural, a propósito da presidência de Eugénio Lisboa na Comissão Nacional da UNESCO. Nesse meu pequeno testemunho, fiz questão de só citar textos do homenageado, para fugir à tentação de falar de mim.

Hoje, porém, tratando-se do primeiro volume das suas próprias memórias – provocantemente intituladas Acta est Fabula (Lisboa, 2012) –, seja-me permitido quebrar tal protocolo e cruzar algumas das minhas memórias pessoais com as deste autor. Por uma simples razão: somos amigos há quase quatro décadas e só esse facto explica o convite, tão inesperado quanto honroso, para estar aqui.

Antes de avançar, devo fazer um aviso e uma declaração de interesses. Não sou crítico literário e, como sociólogo da comunicação e da cultura, desconfio da investigação assética. Mais: tenho alguma dificuldade em ser isento e, no caso presente, não pretendo de todo ser isento – porque admiro muito o Eugénio Lisboa. Tanto, que faço minhas as célebres palavras de Romain Rolland, então endereçadas a Henry de Montherlant: «o mundo é mais rico para mim desde que o conheço».

Afinal, que venho eu aqui fazer? Nunca fui a Moçambique e sou (um pouco) mais novo do que o autor destas memórias. Além da amizade, só posso explicar ainda a minha presença, neste lançamento, com o facto de vir dedicando, à sua obra, ao longo dos anos, toda a atenção de que sou capaz. Julgo ter sido D’Annunzio a recordar-nos que a melhor homenagem, que podemos prestar a um autor, é justamente a atenção.

Armado destas credenciais e sabendo-me numa universidade, venho aqui propor um modelo de análise para a identificação de chaves de leitura deste singular livro. Dir-me-ão – e bem – que a escrita de Eugénio Lisboa não carece de chaves de leitura. Ele sempre praticou a clareza própria dos pensamentos profundos, a limpidez típica de quem pensa bem. Suspeito, porém, que a leitura do presente livro, à luz de uma obra produzida em mais de meio século, pode ser altamente reveladora.

Em que baseio tal suspeita? Possuindo quase todos os seus livros publicados – sempre em generosa oferta e calorosamente dedicados –, consegui agora regressar rapidamente às páginas que mais me impressionaram. E encontrei muita matéria de interesse para ser cruzada com o atual primeiro volume de memórias – enquanto não chegam os próximos... 

Não, não estou a propor um modelo de tipo psicanalítico. Estou tão-só a tentar aliciar investigadores para uma revisitação da obra do autor e, a partir de tal retrospetiva, para uma leitura das suas memórias. Como veem, é bem ambicioso o modelo de análise aqui avançado: dá tese – e de doutoramento! Não será esta a oportunidade para ensaiar o modelo. Aliás, faltar-me-iam o engenho, a arte e o tempo para concretizar tão grandioso objetivo. Por hoje e a título de exemplo, vou cingir-me à enunciação de cinco meras hipóteses de trabalho, eventualmente operativas.

RÉGIO

A primeira hipótese pode ser a de estudar a vasta produção regiana deste autor. Foi por aí que eu próprio comecei, pela leitura deslumbrada de um original sobre José Régio, que andava esquecido na editora Arcádia, até que eu o recuperei e publiquei em 1976. Dez anos depois, a história foi contada no prefácio da segunda edição (Lisboa, 1986) e a dedicatória pessoal acrescentava o seguinte: «Para o Jorge Martins, a quem este livro também pertence, por razões que o prefácio explicitamente dá». Face a tão rara generosidade, a minha surpresa ditou uma imediata e sensibilizada resposta, que veio a ressurgir, na introdução ao meu Marketing do Livro (Martins, 1999).

Curiosamente, nas presentes memórias, Eugénio Lisboa relata o seu «primeiro encontro com José Régio» em Moçambique, aos 16 anos, através da leitura do volume de abertura da saga familiar A Velha Casa – um Régio que ele próprio «viria a conhecer, pessoalmente, oito anos mais tarde e a cuja obra consagraria não pouco do [seu] tempo de estudioso da literatura e de escritor» (Lisboa, 2012: 155-158).

MONTHERLANT

A segunda hipótese, para o entendimento do homem e da obra destas memórias, pode ser o conjunto dos textos que, ao longo da vida, Eugénio Lisboa vem dedicando a Henry de Montherlant. Recentemente, afirmou que o escritor francês o fascina desde os 20 anos e que, por isso, a ele regressa constantemente «como quem recarrega baterias» (Lisboa, 2009: 171).

Recordo uma conferência de 1967 intitulada 'Henry de Montherlant e a Moral do Artista'. Só a li em 1976, quando me remeteu de Paris os dois volumes da primeira edição da Crónica dos Anos da Peste, mais tarde reeditada num só tomo pela INCM (Lisboa, 1996) e então saudada, num semanário, como «um dos livros mais desassombrados na história da nossa crítica». Foi nessa conferência que descobri esta bela confissão do nosso autor: «Montherlant, o mais pessoal, o mais independente, o mais descaradamente verdadeiro e direto de todos os escritores franceses do século XX (…), era bem o exemplo que me convinha», como «professor de independência» neste nosso «mundo de escravos e de robots» (ibid.: 218). E quanto às virtudes recomendadas por Montherlant na Carta de um Pai a seu Filho, realçava estas: «coragem, civismo, altivez, retidão, desprezo, desinteresse, cortesia, gratidão e ‘de uma maneira geral, tudo o que se entende pela palavra generosidade’» (ibid.: 220).

É ainda nessa conferência que Eugénio Lisboa resume, no binómio honestidade-coragem, a moralidade do escritor em Montherlant. E explica: «A honestidade é essencial para se não embrulhar os resultados da lucidez. Mas a honestidade pode calar-se. Para que se exprima é necessária a coragem» (ibid.: 240). Todos nós, que ouvimos e lemos o nosso autor há muitos anos, percebemos assim os motivos por que ele não se cala, mesmo quando se trata de um prémio Nobel ou de um primeiro-ministro…

A moral do artista está primeiro. Montherlant recordou-lhe que a «lealdade consigo próprio é a maior marca de respeito que um escritor pode dar ao público» (ibid.: 241). Também por isso, nas presentes memórias, afirma-se que foi tomado o partido de se dizer «só a verdade, embora não toda a verdade», até para garantir que elas valham, como «testemunho de uma época e de um lugar» (Lisboa, 2012: 71-72, 87, 135-136). Eu diria que essa é exatamente uma das razões que fazem deste volume muito mais do que simples testemunho de época e de lugar.

MUNDIVIDÊNCIA

A terceira hipótese, para cruzar esta recente retrospetiva memorialística com as linhas estruturais do homem e da obra, pode receber aqui o nome de mundividência. Há quatro anos, no dia do aniversário do Eugénio Lisboa, a minha mulher e eu oferecemos-lhe um grande livro, cheio de impressionantes fotos aéreas do planeta Terra. Quisemos assim dizer-lhe que tínhamos aprendido, com ele, a ver o mundo… de avião.

De facto, a partir de meados dos anos 70, para nós, acabados de sair do orgulhoso e provinciano isolamento português, ele passou a representar alguém que trazia notícias… lá de cima. Vinha dos fundos do hemisfério Sul (Moçambique), a caminho dos cumes do hemisfério Norte (Suécia); trazia, na mesma bagagem, a engenharia e a literatura, a indústria e a poesia, as ciências e as letras; e foi-se deixando ficar entre Londres e Lisboa.

Não era de palavras cruzadas que vinha falar: era de culturas cruzadas ou, melhor, da necessidade de esvaziar a célebre polémica das duas culturas, aberta no final dos anos 50 por C. P. Snow. Para ele, sempre foi natural o cruzamento dos dois campos. Tal como Einstein era tão notável na física como virtuoso no violino, também o jovem Eugénio triunfou tanto nas ciências como nas letras. Ele conta aqui, neste primeiro volume de memórias, como a Matemática e a Literatura o encantavam por igual (Lisboa, 2012: 85, 145), o que lhe valeu quadro de honra quase constante (ibid.: 168), a média final de 18 valores e várias bolsas de estudo (ibid.: 184).

Eu diria que este autor português teve a sorte de nascer e crescer em Moçambique. Porque – reparem nas suas expressões – «dali, via-se a Europa» (ibid.: 71), «por cortesia» de escritores como Balzac, Stendhal ou Thomas Mann (ibid.: 143-144). Em 17 anos de Lourenço Marques, Martin du Gard mostrou-lhe Paris, Pirandello a Itália, Tolstoi a Rússia, Hemingway a América e, tal como tinha acontecido a Montherlant, o celebrado autor do Quo Vadis desvendou-lhe a Roma antiga.

CLÁSSICOS

Ao citar Roma, estamos a avançar para a quarta hipótese, a do fascínio pela cultura clássica. Fascínio bem curioso num engenheiro eletrotécnico, mas perfeitamente natural em quem, logo na sua juventude laurentina, já lia Plutarco, Tácito e Platão, Ésquilo e Sófocles, estes dois últimos por indicação do seu amigo Zeca, nada menos que o futuro grande matemático Tiago Oliveira (ibid.: 115, 121, 123).

Fascínio também muito natural em quem se confessa seguidor de Montherlant e lhe chama «o último romano» e «o grande romano do nosso tempo». Para ambos os escritores, a história romana, como «microcosmo de toda a História», é verdadeiramente «o corrimão» onde podem agarrar-se, em momentos sombrios (Lisboa, 1996: 108-109). Deste fascínio pela cultura clássica decorrem, naturalmente, o título deste primeiro volume de memórias, os subtítulos de vários capítulos e tantas, tantas passagens da vasta obra de Eugénio Lisboa. E decorre também, certamente, a «sobriedade de estilo» aprendida com a «aticidade dos clássicos» (Lisboa, 2012: 80-81).

LIVROS

À quinta hipótese do meu modelo de análise poderemos chamar a magia dos livros. Teve o Eugénio Lisboa a sorte de lhe calharem grandes professores, por exemplo um que «falava dos livros com uma espécie de volúpia, mesmo de luxúria», sendo «um prazer e uma instrução ouvi-lo e viver com ele a magia dos livros» (ibid.: 46,49). Teve a sorte de, na adolescência, lhe ter entrado pelo quarto adentro uma estante com uma centena de bons livros (ibid.: 122-123) e, assim, o seu mundo de leituras ter-se alargado.

Ali, na sua Lourenço Marques, foram «horas inesquecíveis de descoberta», a ler «vorazmente – mas, sempre, devagar – e com intensidade» os livros em que se revia (ibid.: 191). Lendo-os, ele diz que, «estranha e poderosamente», sentia estar a acrescentar-se a si próprio (ibid.: 172), a ponto de se apaixonar perdidamente pela Senhora de Rênal (ibid.: 124). Aliás, o princípio do primeiro capítulo destas memórias são uma clara homenagem às primeiras linhas do Le Rouge et le Noir de Stendhal. Tal como, ao longo do presente volume, são constantes as evocações literárias dos seus grandes autores preferidos.

Foi por causa dos livros que nos tornámos amigos, o Eugénio Lisboa e eu, há quase quatro décadas, amizade que se alargou logo às nossas famílias e que perdura, com outras fiéis presenças, numa saudável e sempre divertida tertúlia prandial. Uma vez, perante uma banca de venda de livros, atravancada de lixo com capas estridentes, desabafava ele: «Até parece que os editores, depois de separarem o trigo do joio, só publicam o joio».

Mais tarde, partiu o pão em pequeninos (como gosta de dizer) e explicou-se numa entrevista (apud Martins e Almeida, 2011: 413-420): «O que se passa é quase obsceno. E mete medo. Entrar em quase 90% das livrarias causa náuseas: é o reino do mono-estilo, com a promoção sistemática e despudorada do que há de pior: o pimba, o piroso, o sensacionalão, o grande best-seller de lá de fora e de cá de dentro. O chover no molhado: promover, a grandes custos, o que por natureza da sua própria mediocridade já está promovido». E acrescentava Eugénio Lisboa, com o seu proverbial desassombro: «Os grandes heróis dos editores e dos livreiros são os senhores-da-televisão-que-também-escrevem-livros e que despertam a concupiscência dos jovens e não tão jovens que sofrem de iliteracia aguda e por isso gostam de comprar os livros daqueles senhores e senhoras que aparecem muito no petit écran». Noutro local (Lisboa, 2012b), anotava ainda o crítico: «O talento umas vezes não dá dinheiro, outras dá até bastante. (…) A falta de talento não é impeditiva de se ganhar pequenas fortunas: os escritores televisivos que o digam».

Felizmente, ainda se registam exceções promissoras, no campo livreiro. Uma delas, a favor do próprio autor desta catilinária, será a Opera Omnia, chancela de Guimarães que lançou o volume de homenagem a Eugénio Lisboa (Martins e Almeida, 2011) e acaba de lhe editar as memórias (Lisboa, 2012). De assinalável qualidade, este objeto editorial de 208 páginas pode ser assim descrito: capa, contracapa, impressão e acabamento eficazes; caderno de extratextos correto; ergonomia gráfica coerente (papel, formato, grelha, corpo e tipo de letra, entrelinhamento, brancos, hierarquia de títulos); cabeças de página à inglesa (coisa hoje rara, pois até a INCM se esquece delas, como pode verificar-se nos títulos que editou de Eugénio Lisboa...). Só é pena não apresentar um índice remissivo de nomes e lugares, que faz muita falta.

Em resumo, no presente livro, a forma ou «encenação da escrita», como alguém lhe chamou, está bem ao serviço do estatuto deste autor. Mas tal qualidade técnica – para a qual contribuem, em rede social interativa, diferentes profissões do livro (cf. Martins, 2005) – nem sempre é percebida por todos os sucessivos e diferentes clientes. Sabemos que a sociologia considera o livro como «objeto de dupla face, económica e simbólica, mercadoria e significação» e cada mediador como «personagem igualmente dupla, condenada a conciliar a arte e o dinheiro, o amor da literatura e a procura do lucro, através de estratégias que se situam algures entre dois extremos: submissão cínica às considerações comerciais e indiferença heroica ou insensata às necessidades da economia» (Bourdieu, 1999).

Eugénio Lisboa, com a sua experiência de gestor cultural, também sabe. Ele próprio afirmou, aqui, na Universidade de Aveiro: «Pessoalmente, sinto sempre uma aflita gratidão por todos aqueles que quiseram correr, com as minhas congeminações, riscos que não estou certo de merecer. Por isso digo, e com sinceridade o digo: não matem o editor, ele está a fazer o melhor que sabe» (Lisboa, 2007). Já o dissera antes, no atrás citado prefácio à reedição do seu Régio (Lisboa, 1986): «Apesar dos exemplos de gente que nos maltrata a alma e os textos, tenho sido absurdamente feliz. O meu editor mais frequente – o Estado – tem atuado de modo praticamente impecável».

***

Algumas outras hipóteses poderiam ser trabalhadas, no modelo de análise aqui brevemente ensaiado para este livro de memórias. Por exemplo: a da muita curiosidade que, logo em pequeno, o fazia «beber as conversas com sofreguidão» (Lisboa, 2012: 22); a da dureza da vida, temperada pelo gosto do que «faz viver» (ibid.: 62-63); a da ironia, do humor e da sátira, por certo afinadas mais tarde com o seu mestre Montherlant; a do fascínio pelo cinema que «perdurou até hoje» (idem: 26); a da fragilidade da vida versus o prazer da escrita (ibid.: 22, 35, 69, 80-81); e até a antiquíssima dimensão poética. Desta última eu não saberia falar, pois reconheço que tenho pouco ouvido para a poesia.

Mas aproveito a deixa da poesia para terminar com uma história autêntica, passada no solar de Teixeira de Pascoaes (perto de Amarante) e transmitida por Maria José Teixeira de Vasconcelos, sobrinha do escritor. Um dia, apareceu lá um grupo de miúdos para uma visita à casa. Entraram no terreiro e um deles, mais afoito, galgou logo as escadas, espreitou pela porta entreaberta e gritou para baixo: «Eh, malta, o gajo era rico». Nesse preciso momento, a Senhora Dona Maria José surgiu à porta e observou: «Então o menino trata o poeta por gajo?». Meio atordoado, o miúdo ainda fez este comentário: «Ah, o gajo também era poeta?»


Universidade de Aveiro, 17 de Dezembro de 2012

Jorge Manuel Martins [1]
 martins.jorge.manuel @ gmail.com

Publicado na RUA-L (Revista da Universidade de Aveiro – Letras), nº 1, 2.ª série, 2012, 401-408.


BIBLIOGRAFIA CITADA

BOURDIEU, Pierre (1999) «Une Révolution Conservatrice dans l’Édition», Actes de la Recherche en Sciences Sociales, Março, Paris, Seuil.

LISBOA, Eugénio (1986 [1976]) José Régio, a Obra e o Homem, Lisboa, Publicações Dom Quixote.
LISBOA, Eugénio (1996 [1973, 1975]) Crónica dos Anos da Peste, Lisboa, INCM.
LISBOA, Eugénio (2007) «Não Matem o Editor: Ele Está a Fazer o Melhor que Sabe», Ofícios do Livro, Universidade de Aveiro.
LISBOA, Eugénio (2009) Indícios de Oiro II, Lisboa, INCM.
LISBOA, Eugénio (2012) Acta est Fabula. Memórias I - Lourenço Marques (1930-1947), Guimarães, Opera Omnia.
LISBOA, Eugénio (2012b) «Os Juros do Talento», JL Jornal de Letras, Artes e Ideias, 21 de Março.
MARTINS, Jorge Manuel (1999) Marketing do Livro. Materiais para uma Sociologia do Editor Português, Oeiras, Celta.
MARTINS, Jorge Manuel (2005) Profissões do Livro. Editores e Gráficos, Críticos e Livreiros, Lisboa, Verbo.
MARTINS, Otília Pires / ALMEIDA, Onésimo Teotónio de (org.) (2011) Eugénio Lisboa: Vário, Intrépido e Fecundo: Uma Homenagem, Guimarães, Opera Omnia.


[1] Jorge Manuel Martins. Natural de Lisboa, doutorado em Sociologia da Comunicação e da Cultura pelo ISCTE, membro da Academia Portuguesa da História. Professor universitário e consultor de empresas, foi membro da Comissão Nacional da UNESCO e presidente do Instituto Português do Livro e das Bibliotecas. É autor de Marketing do Livro (1999), Patrimónios Mundiais com Selo Português (2003), Profissões do Livro (2005) e de vários volumes da série anual Portugal em Selos.

27 outubro 2013

CONFIDÊNCIAS AFRICANAS DE UM REBELDE



Jorge Manuel Martins




(Comunicação no lançamento das Memórias de Eugénio Lisboa, vol. III, Centro Nacional de Cultura, Lisboa, 24/10/2013)


Para a Maria Eugénia Lisboa


Estamos em presença do terceiro volume das memórias de Eugénio Lisboa (EL), reunidas sob o título comum de Acta Est Fabula. Sabendo que tal expressão servia, no antiquíssimo teatro romano, para anunciar o final de um espetáculo, podemos com propriedade chamar «atores» às personagens que habitam estas memórias. Ora, neste terceiro volume (Lisboa, 2013), um dos atores chamados a palco dá pelo nome de Pegado, mestiço jeitoso para eletricidades e máquinas. Quando alguém lhe pedia um conserto, o Pegado respondia sem pestanejar: «Pode-se dar um jeito...». Idêntico atrevimento deve ter-me assaltado, quando aceitei o desafio de apresentar este volume no Centro Nacional de Cultura, em Lisboa. E enquanto esperava pelo original e dele só conhecia o título, fui ensaiando várias hipóteses de «dar um jeito» a tão lisonjeiro desafio, eu que nunca estive em Moçambique!

À sua chegada ao espaço público, estas memórias parecem apostadas, de imediato, em provocar ou pelo menos intrigar o leitor. Por um lado, o título deixa supor alguma melancolia, uma vez que a expressão «acta est fabula» – a crer em Suetónio – também serviu ao imperador Augusto como despedida derradeira. Mas, por outro lado, todos quantos conhecemos de perto EL sabemos como o seu discurso é sempre marcado pelo vivido, pelo entusiasmo contagiante, pela recusa do trivial e choramingas «era uma vez». Portanto, embora intrigados, retenhamos para já, deste título geral, a saborosa evocação do palco romano e comecemos pela mais óbvia das hipóteses: a de que as presentes memórias saem à rua sob o signo do teatro.

Desde os seus primeiros ensaios, EL revelou-se sempre um arguto analista das emoções em cena. Recorde-se a atenção dedicada às grandes dramaturgias, como as de Régio ou de Montherlant. E agora, com este terceiro volume, ficámos a saber que não perdia as melhores representações quando vinha à Europa e que, mesmo durante um estágio de petróleos na África do Sul, não dispensava, como refere, «alguns livros de algibeira (sobretudo teatro)» (ibidem: 253).

Curiosamente, a época, a que corresponde o presente volume, coincide com as metáforas do meio teatral aplicadas, por Erving Goffman, ao estudo das subtis interações entre os diferentes atores sociais, nas ordens doméstica e organizacional. E foi pela mesma época que um outro sociólogo, Howard Becker, começou a recorrer à sua experiência de pianista de jazz para desenvolver o conceito de «redes de cooperação» nas profissões dos mundos da arte. É sabido que tal atenção às dramaturgias do quotidiano contribuiu para a renovação da sociologia da comunicação e da cultura e, por outro lado, que as assombrosas coincidências, entre o que os escritores «sabem» e o que os cientistas «procuram», já deram origem a estimulantes ensaios de epistemologia literária, como o de Vintila Horia.

Assim, não parece despropositado sugerir, como uma das chaves de leitura do presente volume de memórias, as dimensões do teatro e da contemporaneidade. Mas a ocasião não será a adequada para avançar em tal direção. Até porque a longa «peça de teatro» agora em cena, apesar do seu título geral, ainda não terminou. Suspeito mesmo que o seu autor já se encontra a escrever o quarto ato, pois em tempos, numa entrevista a Júlio Conrado, EL revelou o seguinte: «Não descanso enquanto não escrever as minhas memórias de Londres, (...) anos cheios, inesquecíveis, de teatro (de teatro!), de música, de livros, de viagens, de encontros, de inspiração» (Lisboa, 1998). Como vemos, a primeira e mais enfatizada memória de Londres é... o teatro!

Entretanto, como o original deste terceiro tomo das memórias continuava a não me chegar em versão papel (para mim, está fora de questão ler 500 páginas no ecrã...), fui ensaiando um segundo modelo de aproximação. Sabendo que o presente volume abre com o regresso a África (em 1955) e se prolonga até à saída definitiva de Moçambique (em 1976), decidi reler os testemunhos das personalidades que, tendo lá convivido com EL durante essas duas décadas, colaboraram no recente livro de homenagem coletiva (Martins e Almeida, 2011). Desses textos «africanos», peço licença para escolher três: os de Ana Mafalda Leite, Carlos Adrião Rodrigues e Frederico Monteiro da Silva.

Ana Mafalda Leite dirige uma bela carta ao seu «amigo e professor» que, em 1975-76, na nova cidade de Maputo, conseguia fazer entrar Gide, Montherlant, Régio, Sena e muitos outros pela sala dentro.  E recorda como esses autores passavam a ser verdadeiras «personagens» do quotidiano universitário, por cortesia de um professor que, de modo entusiástico, «os dramatizava em viva biografia» (graças à sua paixão pelo teatro, digo eu...). A certo passo, escreve ainda a antiga aluna: «O nosso Professor Eugénio tinha e tem um não sei quê de dandy, que contracena com a sua segura boa disposição» – (de novo o teatro...) –, «sempre atento à importância da arte e da literatura, fontes e pontes para a vida, e não o inverso».

Carlos Adrião Rodrigues evoca a participação de EL e outros amigos em «projetos comuns» e «campanhas oposicionistas» em Lourenço Marques. E conta episódios reveladores, concluindo: «os que acreditavam que a arte tinha um valor específico, que não se compadecia com espartilhos ideológicos, eram os que, em sociedade, tomavam posições mais corajosas e coerentes em defesa da liberdade e da justiça». Dizia ainda este ilustre advogado, entretanto falecido: ao EL ficou a dever-se a luta «por uma cultura moçambicana», em conjugação «com a universalidade da grande cultura», através do «intermediário estético que era a língua portuguesa», por certo o «principal fator capaz de fazer do Moçambique colonial um país e uma nação». 

Frederico Monteiro da Silva, desde 1958 «colega engenheiro» na Total (filial da Compagnie Française des Pétroles para a África Austral), confessa-se admirador das qualidades de EL, enumerando-as assim: «vício da leitura», «integridade e talento», «hábitos frugais», «prodigiosa memória», «muita e variada erudição». Entre outras informações, Monteiro da Silva conta que EL, regressado do Técnico e de novo em Lourenço Marques, «destacou-se nas tertúlias intelectuais da cidade» e passou a ser «a consciência intelectual dos Jovens Naturais de Moçambique», colaborando sempre «em jornais e revistas de Moçambique e de Portugal europeu, cuja prática mantém até hoje».

Resumidos, assim, três dos muitos e interessantes testemunhos do citado livro de homenagem, reconheça-se, mais uma vez, não ser este o lugar apropriado para dar conta de um «trabalho de campo» a haver (quando possível): o de entrevistar atores sociais que partilharam o quotidiano de EL em Moçambique, nas duas décadas correspondentes a este terceiro volume de memórias, com o objetivo de cruzar fontes de informação.

*** ***

Até aqui, foram enunciadas algumas hipóteses para um modelo de análise desta obra. Porém, uma vez recebido o original (logo devorado e a seguir relido e muito sublinhado, como é meu antiquíssimo hábito...), dei por mim a perguntar-me: qual será, no futuro, o público deste livro? Esta questão, colocada assim à cabeça, denuncia por demais a minha tineta de profissional e professor de comunicação e marketing. Deixem-me, porém, repetir a pergunta, de modo ainda mais desabrido: quem será o cliente deste produto? 

Para alguns ouvidos, a inscrição do livro em tais parâmetros comerciais pode ser chocante e, «embora ditada por boas razões metodológicas de enquadramento na recente economia da cultura, não é isenta de riscos»; um desses riscos pode ser o de «caucionar o atual pendor internacional de obediência (quase) cega à ditadura do cliente médio e de transferência, para a esfera da difusão, da responsabilidade das decisões da produção» (Martins, 2007). Mas eu sei que esta linguagem não é chocante para EL. O mesmo autor que lamenta como «o mercado e a generalidade das pessoas respiram mal o sublime», também reconhece que «podemos ter um grande produto a mostrar, mas é preciso publicitá-lo intensamente e isso custa dinheiro» (Lisboa, 2011). Quem se atreve a discordar? A diferença entre qualidade-técnica e qualidade-percebida já não oferece dúvidas, mesmo no sector português da gestão cultural.

Regressando à minha impertinente questão: nestes tempos em que predomina o entretenimento trivial e chão, quem vai ler estas 500 páginas de impressionante literatura memorialística? Façamos algumas contas. Este terceiro volume propõe o regresso aos anos 55-76 do século passado em Moçambique. Arredondando e simplificando, são memórias de há 60, 50 e 40 anos, vividos numa antiga colónia lusófona. Quem serão, hoje, os potenciais leitores médios deste testemunho de vida?

A geração dos meus filhos e dos meus alunos –  que anda agora pelos 30, 40 e 50 anos – configura o segmento mais apetecido pela indústria livreira, pois é aí que se verificam (segundo os estudos recentes) as melhores práticas de leitura, mesmo em concorrência com outras solicitações (Santos, 2007). Acontece, porém, que os membros desta geração não viveram pessoalmente o tempo das presentes memórias ou, então, nessa época não tinham ainda acordado verdadeiramente para a vida. Para a maioria deles, o Estado Novo, a Guerra Colonial ou o Abril de 1974 situam-se algures num passado muito remoto, de brumas, aljubarrotas e fotos a preto e branco. E acontece também que, viciada no toca-e-foge digital da comunicação instantânea e impaciente, esta geração parece revelar algum medo do silêncio e do tempo, indispensáveis para ler um livro como o agora editado.

Por tudo isso, se eu pudesse e soubesse, gostaria de me dirigir especialmente à geração dos meus filhos e dos meus alunos (as filhas de EL, ambas grandes leitoras, pertencem a tal geração e, por isso, o meu presente texto é dedicado à mais velha, a Maria Eugénia), com o objetivo de lhes apresentar as memórias de EL e aliciá-los a lê-las. Para quê? Para que pudessem perceber por dentro a geração anterior à sua e, assim, perceberem-se melhor a si próprios. E também para tentar ampliar a imensa minoria que sabe como um bom livro não dá para viver, mas dá viver.., mesmo pagando tributo ao tempo – o tempo que faz do velho livro «a expressão direta para sair das tiranias da comunicação» (Wolton, 1997). Assim, vale a pena convidá-los a ler EL.

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Foi há cerca de meio século: a vida social era então estruturada por um espaço e um tempo bastante precisos; um espaço definido por locais comuns, pessoais, profissionais e outros, como o café, o cinema e a livraria; um tempo definido pelas agendas da família e dos grupos sociais de trabalho, tertúlia e lazer; lugares e tempos que construíam comunidade e cidadania. Foi há cerca de meio século: a cultura era uma espécie de consciência crítica da humanidade, consciência que obrigava a olhar de frente o real e que impunha a figura do intelectual como um importante ator social do século XX. Querem ouvir?

Recuando 50 anos, ao tempo em que trabalhava nos petróleos da Total em Lourenço Marques, escreve EL: «Entretanto, ia lendo muito e vendo muito cinema», o que ajudava «a aprofundar ideias e emoções. E a ver mais claro. (...) Não tinha o tempo todo, porque, profissionalmente, estava bastante ocupado» (Lisboa, 2013: 246-247). Porém (acrescenta mais à frente), como «o trabalho não tinha grandes mistérios e os problemas já estavam mais do que identificados», podia desenvolver outros interesses como «a leitura, a escrita, as conferências que fazia, o ‘Cine-Clube’, o teatro, os cinemas, a descida às livrarias da Baixa, aos sábados de manhã, (...) os amigos, o convívio nas casas de uns e de outros, a praia... Era uma vida cheia, emocionante, rica, numa cidade de onde não apetecia sair» (ibidem: 269-270).

Esta referência ao «convívio» remete para a abertura do anterior sétimo capítulo destas memórias, onde EL recorda ter sido em 1959 que conheceu «alguns dos amigos que duraram até à morte deles» (como Rui Knopfli e Carlos Adrião Rodrigues) e as respetivas reuniões de sábado, nas suas casas ou nos cafés, «ruidosas, animadas e, umas vezes, estimulantes, outras vezes, apenas ruidosas e irritantes» (ibidem: 115, 118). Os amigos tendiam a aquecer quando falavam «de livros, de filmes, de discos, de quadros», embora tivessem «realmente em comum» algo de muito importante: os três amavam «uma arte livre de imposições ideológicas – uma arte que preservasse, acima de tudo, os valores da arte»; ou seja, uma arte «forte» que não vergasse a quaisquer «dogmas rígidos» de esquerda ou de direita (ibidem: 317-318, 348).

Alargados a outros amigos, tais debates foram transbordando para as revistas ou jornais onde (como «jornalistas amadores ou diletantes», portanto sujeitos a receber em troca «calúnias, desconfianças e patadas») passaram a colaborar e a poder evidenciar a sua opção pela liberdade. Opção que se traduziu, por exemplo, na Voz de Moçambique de 3 de janeiro de 1965, neste desafio corajoso: elegeram D. Sebastião Soares de Resende, então Bispo da Beira, como «figura do ano», apesar de saberem que «a PIDE odiava-o e o Estado Novo temia-o» (ibidem: 323, 326-327). Rapidamente começaram a ser considerados «perigosos comunistas». EL, que sempre se afirmara independente – «nunca compreendi como se podia detestar o Estado Novo e venerar o Estado Soviético» (ibidem: 181) –, esclarece quem ainda mantenha dúvidas: «éramos frontalmente contra o Estado Novo – que considerávamos, além do mais, intelectualmente pelintra e possidónio – mas jamais fomos aliciados pelas sereias do marxismo-leninismo, a que éramos figadalmente avessos»; todavia, em Moçambique, «qualquer interesse pela política, que não passasse pela União Nacional, era suspeito» e, sobretudo, «na questão quente das colónias, a divergência chamava-se ‘traição’» (ibidem: 294-295).

Começava então a ser óbvio «que as colónias portuguesas tinham os dias contados» e se «os sinais apareciam por todo o lado», com a eclosão da guerra «o clima, nas colónias, mudou bruscamente» (ibidem: 122, 129). Porém, «o mais doloroso disto tudo», recorda EL, seria reconhecer que «a independência de Moçambique era inevitável. Não que a não considerássemos, também, eticamente boa, mas não tínhamos dúvidas de que, quando viesse, a nossa vida iria mudar dramaticamente. O nosso mundo iria desabar, para que outros tivessem direito ao que até aí lhes fora negado» (ibidem: 295).

O último capítulo deste volume de memórias – mais de 50 páginas subordinadas ao título «Revolução» – é profundamente dilacerante. Começa assim: «O ano de 1974 ia ser cheio de emoções exageradas: exaltação, alegria, esperança, decepção, medo e desespero. Tudo num caldo de sabor, por vezes, angustiante» (ibidem: 425). Deste último capítulo – como aliás de todo o presente volume –, fica muita matéria à consideração de quem tenha o engenho e a arte de reconfigurar, com a marca pungente do vivido, algumas assépticas histórias de Portugal. Tal marca do vivido vem sempre elegantemente disfarçada pelo humor britânico de quem, como poucos, é capaz de relativizar o sofrido com a evocação certeira do divertido. «Conto apenas um punhado de histórias», desculpa-se o autor, apesar de saber quanto elas podem ser «representativas da epopeia de desastres e desmoronamentos que avassalava o país e atingia, com particular crueldade, a comunidade portuguesa» (ibidem: 472).

[Neste ponto, permito-me introduzir uma memória pessoal, do meu tempo de diretor editorial da Arcádia, quando preparava o livro de EL intitulado José Régio, a Obra e o Homem, lançado em 1976. Depois de nos termos carteado durante meses, encontrámo-nos finalmente na Arcádia. Na conversa, participaram mais duas pessoas: o Almeida Gonçalves, que veio a ser, durante 25 anos, o sábio editor da belíssima coleção de livros ilustrados dos CTT Correios de Portugal, alguns deles distinguidos com prémios de relevo; e uma professora universitária cujo nome esqueci e que, ao tempo, acreditava com entusiasmo militante no marxismo triunfante. Foi uma saborosa conversa, porque nela brilhou a cativante presença de EL. Mas foi uma conversa dolorosa, porque ele nos contou algumas das inquietantes histórias moçambicanas que reaparecem, agora, no último capítulo deste volume de memórias. Todavia, por cada desgraça narrada por EL, a tal professora contrapunha reticências, dúvidas e reservas, numa tentativa de desvalorizar aquele testemunho. O EL, diplomata, generoso e tolerante, não se ofendeu e até sorriu. Mas o pior (o pior...) aconteceu depois de ele ter saído, quando a dita militante rematou, com fervor intransigente: «Isto tudo até pode ser verdade, mas não posso concordar, para não alimentar a direita reacionária»...].

Após este parêntese das minhas próprias recordações, voltemos ao volume em apreço. Desse movimentado palco onde se sucederam, há quatro décadas, grandezas e misérias, desassossegos mortíferos e anedotas melancólicas, alarmes terríveis e apocalipses vários, desse palco da vida vemos agora descer, com serena dignidade, o autor destas memórias. Apesar de ter sido «obrigado a ficar só Português» por força de uma «desumana lei das nacionalidades» (ibidem: 464), imposta então em Moçambique pela FRELIMO, vemos ainda hoje – numa entrevista à televisão em Agosto deste ano de 2013 – EL afirmar com a lucidez de sempre: «Eu sou muito europeu e sou também muito africano. Não me sinto desenraizado. Sinto-me com múltiplas raízes» (Lisboa, 2013b).

Aberta esta singular proposta de leitura, aqui, perante vocês, geração mais nova que estive a tentar aliciar, reconheço diferenças e fico com vontade de vos colocar questões. Ao contrário do que sucedia, há quase meio século, o espaço e o tempo da vossa vida social parecem, hoje, demasiado governados pelas modernas redes de comunicação global. Pergunto: vocês, sentem-se realmente felizes? E também parece que o entretenimento e a diversão andam a querer substituir a educação e a cultura; e que o sensacionalismo e a frivolidade andam a querer apresentar-se como suficientes para manter em cena o grande teatro do mundo civilizado. Pergunto: vocês, geração mais nova, vão mesmo deixar?

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Três notas finais a encerrar esta apresentação. A primeira para agradecer, ao autor destas memórias, a generosidade com que anda a partilhar a sua vida com os leitores, os atuais e os futuros (os tais que eu tentei aqui aliciar...). Ao agradecimento, talvez o EL contraponha o incitamento recebido de José Régio: «Quando se resolve, então, a organizar e a publicar livros que tem obrigação de nos dar? (Obrigação perante si próprio, perante os Seus, perante os amigos... e perante a cultura nacional)», escrevia o autor de Há mais mundos, insistindo para que EL assumisse a sua «função de escritor» (Lisboa, 2013: 346, 353). Como é sabido, assumiu mesmo.

A segunda nota destina-se a explicar por que motivo chamei ao presente texto «Confidências Africanas de um Rebelde». Se roubei parte do título à conhecida novela de Roger Martin du Gard, foi para convocar um dos escritores de cabeceira de EL – cujas obras completas a Antonieta lhe ofereceu quando casaram (Lisboa, 2013: 99) – e também para recordar que a Confidence Africaine abre com uma data, «Maio 1930», a do nascimento do próprio EL... Por outro lado, se chamei «rebelde» ao nosso autor, foi para sublinhar como ele sempre recusou as imposições ideológicas à direita e à esquerda, sempre teve a honestidade e a coragem de fazer uso da razão, talvez a exemplo de Henry de Montherlant, seu «professor de independência e de altivez» (Lisboa, 1996: 218), mas também na senda de Bertrand Russel, cuja inteligente e irónica autobiografia EL sempre colocou «num lugar à parte» (ibidem: 245). Por tudo isto, sou levado a considerar, como um dos episódios-charneira do presente terceiro volume de memórias, o momento em que um director francês da Total lhe diz cara a cara: «Lisboa, V. está a fazer um óptimo lugar (...). Mas V. é um rebelde» (Lisboa, 2013: 301). A competência e a rebeldia eram (e são) coisas muito raras e... perigosas!


A terceira e última nota é para referir que, tendo eu iniciado esta nota de leitura com o «pode-se dar um jeito» do Pegado, quero terminá-la com uma segunda história do mesmo jaez. A um outro mestiço do interior, que nunca vira o grande oceano, alguém foi-lho mostrar. Mas só conseguiu arrancar-lhe esta insólita, porém sóbria, exclamação: «Ah, o mar! É muito distinto...». Também eu, convicto de ter estado aqui a tentar apresentar uma importante obra de um poderoso escritor – uma obra que representa um verdadeiro insulto à vulgaridade reinante nos atuais escaparates livreiros –, também eu vou remeter-me ao prudente silêncio que a sobriedade aconselha. Mas em vez de uma apreciação insólita – do género: «Ah, este livro! Um oceano de escrita! Muito distinto...» –, proponho-me levar até ao fim o título geral das presentes memórias. O autor chamou-lhes Acta Est Fabula, como diziam os romanos no fecho de um espetáculo de teatro. E eu vou acrescentar-lhe o competente imperativo de encerramento: se o dramaturgo afirma que a sua peça está (por agora) representada, então há que aplaudir Eugénio Lisboa. Portanto: plaudite.

Lisboa, Centro Nacional de Cultura, 24 de outubro de 2013


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BIBLIOGRAFIA CITADA

BECKER, Howard S. (1982), Art Worlds, Berkeley, University of California Press.
GOFFMAN, Erving (1993[1959]), A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias, Lisboa, Relógio d’Água, tradução de Miguel Serras Pereira.
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LISBOA, Eugénio (1996 [1973,1975]), Crónica dos Anos da Peste, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
LISBOA, Eugénio (1998), Entrevista, Boca do Inferno 3, Câmara Municipal de Cascais.
LISBOA, Eugénio (2011), «Resposta ao Questionário de Proust» e «Entrevista», apud Martins e Almeida, 425 e 415.
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LISBOA, Eugénio (2013b), Entrevista ao programa «Mar de Letras» (RTP, Agosto 26; RTP África, Agosto 31),
MARTIN DU GARD, Roger (1931), Confidence Africaine, Paris, NRF-Gallimard
MARTINS, Jorge Manuel (2007), «Livros: Difícil é Vendê-los», Ofícios do Livro, Universidade de Aveiro.
MARTINS, Otília Pires / ALMEIDA, Onésimo Teotónio de (org.) (2011), Eugénio Lisboa: Vário, Intrépido e Fecundo: Uma Homenagem, Guimarães, Opera Omnia.
SANTOS, Maria de Lourdes Lima dos (coord.) (2007), A Leitura em Portugal, Lisboa, Minstério da Educação (GEPE Gabinete de Estaística e Planeamento da Educação).

WOLTON, Dominique (1997), Penser la Communication, Paris, Flammarion.

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Jorge Manuel Martins, natural de Lisboa, doutorado em Sociologia da Comunicação e da Cultura pelo ISCTE, membro da Academia Portuguesa da História, professor universitário e consultor de empresas, foi membro da Comissão Nacional da UNESCO e presidente do Instituto Português do Livro e das Bibliotecas. É autor de Marketing do Livro (1999), Patrimónios Mundiais com Selo Português (2003), Profissões do Livro (2005) e de vários volumes da série anual Portugal em Selos.